Ao redor do mundo, o consumo de Cannabis Medicinal já representa a maior fatia do mercado legal, com cerca de 70% do faturamento global. De acordo com relatório produzido pela consultoria Grand View Research, desde 2019 houve crescimento de 20% no mercado — o qual pode atingir mais de US$ 70 bilhões em 2027. No Brasil, o debate sobre a regulamentação da Cannabis Medicinal tem se intensificado e ganhado mais relevância no cenário político nacional. No entanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido.
Esse processo teve início em 2015 quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n.º 3 e, posteriormente, a RDC n.º 17. O movimento realizado pela agência foi de grande importância pelo fato da primeira resolução retirar o Canabidiol (CBD) da relação de substâncias proibidas e incluí-lo na lista de medicamentos em que estão os fármacos controlados, enquanto a segunda resolução foi responsável por possibilitar a importação, o que permitiu que a Anvisa registrasse, em 2017, o primeiro produto com tetrahidrocanabinol (THC).
Em 2019, a Anvisa publicou a RDC n.º 327, que definiu os requisitos para a comercialização de produtos feitos à base de Cannabis, com finalidade medicinal, no país. Com isso, os normativos publicados pela agência reguladora representam os primeiros passos rumo à regulamentação. Entretanto, apesar de notáveis, as medidas adotadas ainda não são capazes de solucionar uma das questões mais relevantes quando se trata de Cannabis Medicinal: a liberação do cultivo.
Nesse sentido, a regulamentação no Brasil avança lentamente, especialmente quando comparada com outros países. “O Canadá é um dos pioneiros, começou no uso medicinal e depois foi para o recreativo. O Uruguai seguiu o mesmo caminho. Já nos EUA, como cada estado tem sua legislação, há um movimento muito grande. Alguns têm o uso medicinal, enquanto outros o recreativo. Na América Latina temos algumas movimentações do uso medicinal, como na Argentina e Chile. O Brasil está sempre ficando para trás”, explica Bruno Pegoraro, cofundador e presidente do IPSEC Brasil.
Na Europa, nações como Holanda, Espanha e Itália, tanto o uso medicinal como recreativo são permitidos. Em alguns países há a legalização e a ampliação de políticas de redução de danos e descriminalização de drogas, com foco na saúde. Isso porque, em muitos casos, a Cannabis Medicinal é um importante meio para que pacientes de enfermidades graves possam ter uma maior qualidade de vida ou até mesmo encontrar uma cura. Além disso, o leque de aplicações é grande e pode fazer com que os sintomas de doenças como Parkinson, Alzheimer, Diabetes, entre outras, sejam mais brandos. No Brasil, contudo, até abril de 2020, pouco mais de 35 mil pacientes tinham autorização para o uso medicinal, o que representa 0,017% da população brasileira.
Os desafios e impactos da regulamentação
De acordo com Pegoraro, a regulação é, sem dúvida nenhuma, um dos maiores desafios. “Hoje, a legislação é muito travada. Nós não conseguimos avançar com mais produtos e mais frentes de trabalho porque não há uma regulação clara”, afirma. “Temos uma sociedade muito conservadora e isso reflete no Congresso. É um tema com muitos preconceitos. Já avançou muito, estamos tentando trazer informações e dados concretos, montar uma frente parlamentar, dar continuidade às discussões para chegar a uma regulamentação e, para isso, nós estamos sempre tentando trazer o debate para a mesa”, completa.
Diante desse cenário, superar a resistência sobre a produção da Cannabis em escala industrial tem sido desafiador. Com a RDC 327, há a possibilidade de fabricar e comercializar medicamentos que contenham o CBD e THC, no entanto, com a proibição do cultivo, a atuação dos fabricantes é limitada, uma vez que precisam importar matéria-prima para os fármacos. Sendo assim, a falta de acesso a esses insumos provoca atrasos para o desenvolvimento da indústria no país.
Nesse contexto, a proibição tem impactos diretos sobre o preço dos medicamentos já que há a necessidade de importar. Outros efeitos recaem, também, sobre a economia. Segundo estudo realizado pela Kaya Mind, se regulada, a Cannabis no Brasil poderia gerar 117 mil postos de trabalho e movimentar R$ 26 bilhões ao ano com uso medicinal e recreativo e com arrecadação de até R$ 8 bilhões em impostos. Com a regulamentação, a perspectiva é que a economia possa prosperar, o que reduziria o preço dos medicamentos e, consequentemente, aumentaria a oferta para o atendimento das demandas da sociedade.
Avanços recentes da Cannabis Medicinal
O uso da Cannabis Medicinal tramita no Congresso Nacional há anos. Mas, recentemente, o marco regulatório voltou à pauta de debates e teve parecer favorável da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que avaliou o Projeto de Lei 399/15, o qual dispõe sobre o cultivo exclusivamente para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais da Cannabis.
Na prática, isso significa que o PL foi aprovado com restrições, ou seja, o plantio só poderá ser feito por pessoas jurídicas, com o objetivo de garantir métodos seguros e controlados do cultivo, sendo vetado qualquer possibilidade de uso recreativo.
Além disso, o Projeto prevê que o plantio seja feito em estufas projetadas para impedir o acesso de pessoas não autorizadas, de modo a evitar, também, a disseminação da planta no meio ambiente. Apenas o cânhamo (planta de Cannabis) poderá ser cultivado em espaço aberto, contudo há a exigência da presença de técnicos responsáveis para atestar o nível de THC — limitado, atualmente, a 0,02%.
A proposição tramita em caráter terminativo e pode ser enviada diretamente ao Senado Federal. Contudo, parlamentares contra o PL já manifestaram que entrarão com recurso para que a matéria seja levada ao plenário da Câmara. De acordo com Pegoraro, a Anvisa também está aguardando a sinalização do Congresso sobre como a regulamentação avançará.
Portanto, nesse momento, a atuação de profissionais de Relações Institucionais e Governamentais (RIG) se mostra ainda mais fundamental, uma vez que o monitoramento do PL e dos normativos da agência reguladora é mandatório para assegurar a defesa de interesses.
Além disso, segundo Pegoraro, a atuação também é indispensável no combate às fake news. “Em nossa atuação, estamos informando muito e trazendo muitos dados validados. Vemos muita disseminação de notícias falsas, inclusive por parte de congressistas. É muito difícil, mas enquanto instituto, buscamos colaborar com dados que possam desmistificar e tirar as fakes news da frente”, declara.
Os benefícios da regulamentação
Além das possíveis vantagens à economia brasileira, a regulamentação da Cannabis Medicinal também é responsável por trazer benefícios à sociedade, entre os principais, estão:
Acessibilidade
Atualmente, para ter acesso a medicamentos à base de Cannabis é preciso se cadastrar no site da Anvisa, preencher formulários, apresentar receitas médicas, entre outros processos, que dificultam o acesso. Com a regulamentação, todo o processo poderá ser simplificado, o que permitirá o cuidado de doenças graves.
Redução no tempo de espera
A Anvisa tinha estabelecido o prazo de três meses para responder a pedidos de importação. Para pessoas em estado terminal ou portadoras de doenças crônicas, o longo tempo de espera não é viável. A agência passou, então, a reduzir o prazo para a avaliação da solicitação e, atualmente, é possível receber retorno em até 10 dias. À medida que a regulamentação ganhe mais forma, a burocracia tende a diminuir.
Qualidade dos produtos
Um importante benefício da regulamentação está associado à garantia fornecida pela Anvisa. Uma vez que a Cannabis seja regulada, a agência terá maior controle sobre o produto que está sendo disponibilizado à população e ditará os parâmetros de qualidade.
Vale ressaltar que todo o processo para a regulamentação deve ser acompanhado para que todas as organizações e atores dos setores envolvidos possam se preparar para as possíveis mudanças.
Quer saber mais sobre o tema? Então, confira a entrevista completa de Pegoraro à Inteligov.
Acompanhe o podcast Dona Política e Seus Robôs, que conta com a participação de profissionais da área de Relgov, políticas públicas e Advocacy em um bate-papo sobre a rotina de defesa de interesses no Congresso Nacional.