Há pouco menos de um mês, as redes sociais foram inundadas por posts de pessoas obcecadas por um podcast com o título semelhante ao de um filme de terror: A Mulher da Casa Abandonada. Ao ritmo que as postagens cresciam, mais e mais curiosos começaram a acompanhar os episódios semanais, até que o programa viralizou de tal maneira que acabou virando notícia nos jornais, sendo comentado até em programas de fofocas na televisão. Ou seja, mesmo quem não escutou os episódios tomou conhecimento sobre o assunto.
Mas, se você nunca ouviu falar, o podcast “A Mulher da Casa Abandonada” é uma produção da Folha de S.Paulo sobre um caso que foi apurado durante seis meses pelo jornalista Chico Felitti, que também é o narrador da história. Felitti passou a investigar a vida de Margarida Bonetti, moradora de uma “mansão abandonada”, localizada em um dos bairros mais ricos de São Paulo, Higienópolis.
Em um primeiro momento, o jornalista quer saber mais sobre os motivos que levaram a mulher a habitar uma casa que está “caindo aos pedaços”. Durante a investigação ele descobre que Margarida foi acusada de cometer um crime impensável: manteve uma mulher brasileira em condições análogas à escravidão por vinte anos, nos Estados Unidos, onde mantinha residência.
A partir daí, Felitti passa a coletar informações sobre a família de Margarida – uma das famílias mais ricas e tradicionais de São Paulo – para contextualizar o motivo dela ter ido morar nos Estados Unidos, como levou uma mulher para servi-la em outro país e como aconteceu o crime e a denúncia. E, embora uma denúncia tenha sido feita contra Margarida, ela nunca chegou a ser condenada e nem pagou pelo crime cometido. Em vez disso fugiu para o Brasil e se tornou foragida do FBI. E, desde então, permanece habitando a casa em ruínas.
A repercussão e a banalização do trabalho escravo
Após a viralização do podcast, o casarão em Higienópolis se tornou um ponto turístico. Pessoas de todos os cantos da cidade, e até de outros estados, quiseram olhar de perto a residência da foragida do FBI. A rua, que era tranquila e reservada, rapidamente passou a apresentar focos de engarrafamento por conta dos curiosos que desaceleraram seus veículos para dar uma espiada nos muros da casa. Teve gente que chegou a acampar em frente ao local na expectativa de encontrar com a proprietária do imóvel.
Nesta semana, após lançar o último episódio, Felitti comentou sobre a repercussão do programa. O criador do podcast não esperava que a história fosse alcançar tantas pessoas, porém, lamentou a espetacularização do caso de Margarida. O jornalista ainda explicou que o objetivo principal de contar a história era dar destaque aos casos atuais de trabalho análogo à escravidão e estimular a sociedade a denunciar esses crimes. Por um lado, parece que o podcast cumpriu com a função.
Em um levantamento realizado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), a pedido da Folha de S.Paulo, o número de denúncias de trabalho doméstico análogo à escravidão no Brasil resultou em um aumento de 67% após o podcast ser lançado. Isso significa que em todo o país houve um aumento na identificação desses casos, principalmente na região de São Paulo, onde as denúncias triplicaram.
No entanto, mesmo que mais denúncias estejam acontecendo, o foco da história ainda é o casarão, a mulher que nele habita e o espetáculo em torno do sofrimento das vítimas da escravidão contemporânea. Margarida nunca será julgada por ter escravizado uma mulher negra por vinte anos, mas a sua casa servirá de palco para o terrível circo que se formou por conta dessa tragédia, até uma próxima história começar a “pipocar” pela internet e o caso da Mulher da Casa Abandonada cair no esquecimento. Tanto para quem busca por entretenimento quanto para os que se sentem engajados em apoiar a causa por trás da narrativa.
A escravidão moderna no Brasil
Sim, a escravidão foi abolida, formalmente, em 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Mas então, como é definido o trabalho análogo ao escravo?
O Artigo 149 do Código Penal define o trabalho análogo ao escravo como aquele em que as pessoas são submetidas ao trabalho forçado, jornadas de trabalho que podem ocasionar danos físicos, condições degradantes e restrição de locomoção em razão de dívida contraída com empregador. O agravante para o crime acontece quando ele é cometido contra crianças e adolescentes ou por motivos de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Foi apenas em 1995 que o Brasil reconheceu a ocorrência do trabalho escravo em seu território diante da Organização das Nações Unidas (ONU), e passou a criar medidas para combatê-lo. Nas primeiras duas décadas de fiscalização, mais de 47 mil trabalhadores submetidos a condições degradantes foram resgatados. Contudo, ao longo dos anos, percebeu-se uma migração do ambiente onde esse tipo de crime é praticado, das zonas rurais para as cidades.
Nos casos de escravidão moderna que foram identificados mais recentemente no país, a maior parte das vítimas eram mulheres negras que trabalhavam em casas de família como empregadas e que foram intimidadas pelos patrões, sofreram ameaças, violência física e psicológica. Esse tipo de violência pode levar a vítima a perder a autonomia sobre a própria vida, o que impede que ela consiga sair dessa situação sozinha.
Portanto, é um dever social o de combater situações como essas. Então, caso desconfie de que alguém está sendo submetido ao trabalho análogo à escravidão, faça a denúncia! Pode ser por meio do formulário do Sistema Ipê, diretamente nas unidades do MPT ou pelo Disque 100.
Este artigo foi escrito por Anna Carolina Romano, analista sênior de comunicação da Inteligov. Assine a nossa newsletter e receba todos os nossos artigos, análises, materiais ricos, entrevistas e lançamentos!